quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Café Dueça

A pé, ou de bicicleta, a adolescência obrigava-nos a mexer, a deambular pelo concelho e pelas redondezas, arranjar e contactar amigos eram objectivos sempre presentes.

Nesses tempos já distantes, de sonho e inquietação, havia contudo dois locais que nos marcaram. Numa época de repressão, de miséria e num país sem futuro, eram sítios de leitura e diálogo, também de sonho e de crença noutro mundo melhor.

Um chamava-se Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian que percorria quase todas as aldeias do concelho, apesar de acessos quase intransitáveis.

Dentro dela viajavam dois amigos, que ficaram sempre na memória e no coração, o António e o Professor Seixas. Além dos livros, havia a simpatia e a palavra amiga, o aconselhamento na leitura.

Mais tarde percebi que aquela viatura transportava armas mortíferas contra o regime fascista e tirano, era todo um arsenal de informação, conhecimento e cultura, que os tentáculos do ditador dificilmente penetravam.

O outro local, todos o referiam simplesmente como Dueça. Não era propriamente um café, mas antes uma espécie de centro cívico. Por lá passavam os que desejavam trocar a palavra e ter informação não afecta ao regime.

O jornal “A República”, do nosso querido Raul Rego, passava de mesa em mesa, de mão em mão. Revezavam-se os três irmãos, no atendimento aos clientes mas também e sobretudo na troca de ideias e, apesar dos perigos, na crítica em surdina mas contundente.

Um dos irmãos, o mais jovem, destacava-se pela sua energia e participação nas iniciativas da oposição à ditadura. Por outro lado a sua prática diária era já o exemplo do que deveria ser uma sociedade diferente, fraterna e livre. Os analfabetos, ou que mal sabiam ler e escrever, que não eram capazes de tratar dos papéis, também faziam escala no Dueça, e lá estava ele sempre disponível para encaminhar e ajudar.

O nome era conhecido e referenciado pelo regime, como um perigoso elemento subversivo, Sebastião da Cruz Lopes, uma bandeira, um combatente, um amigo querido que há uns tempos atrás deixámos de ver.

A morte faz parte da vida, e só morre verdadeiramente quem não deixa memórias, por isso o Sebastião, como simplesmente era conhecido, continua no coração e na mente daqueles que continuam a ter capacidade de sonhar com uma sociedade diferente, livre, justa e fraterna.

(Nuno Filipe, Sebastião N.º 1, Novembro de 2008)

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